O vírus influenza pertence à família Orthomyxoviridae e é dividido em quatro gêneros: A, B, C e D. Entre eles, o gênero A é o mais relevante do ponto de vista sanitário, por estar associado a grandes epidemias e pandemias. Trata-se de um vírus de RNA com alta taxa de mutação, característica que favorece sua adaptação a diferentes hospedeiros e o surgimento de variantes com maior patogenicidade. Sua estrutura contém proteínas essenciais para o processo de infecção: a hemaglutinina (HA), responsável pela entrada do vírus nas células; a neuraminidase (NA), que facilita a liberação das partículas virais; e a proteína M2, envolvida na acidificação dos endossomos e na liberação do material genético viral no citoplasma (Flint et al., 2020).
Em 2024, os Estados Unidos reportaram, pela primeira vez, a presença de uma cepa altamente patogênica de H5N1 em bovinos leiteiros, um evento inédito na história da influenza aviária. Inicialmente detectado em rebanhos do Texas e do Kansas, o vírus rapidamente se espalhou para centenas de fazendas em 14 estados, alcançando mais de 380 propriedades. Animais infectados apresentaram sinais clínicos como febre, apatia, redução do apetite, corrimento nasal, mastite, queda acentuada na produção e alterações na qualidade do leite, além de distúrbios digestivos. Evidências sugerem que a transmissão ocorreu tanto pelo contato com aves domésticas e silvestres quanto, possivelmente, de vaca para vaca, por meio de fluidos respiratórios (Sanchez-Rojas et al., 2025).
Os riscos, contudo, extrapolaram a esfera da saúde animal. Em abril de 2024, foi confirmado o primeiro caso humano de infecção por H5N1 associado a bovinos leiteiros, no Texas. Nos meses seguintes, os Estados Unidos registraram dezenas de novos casos entre trabalhadores rurais expostos a animais doentes, com sintomas variando de conjuntivite a quadros respiratórios leves e moderados. Em janeiro de 2025, o país já contabilizava 67 casos confirmados, incluindo a primeira morte, registrada na Louisiana. Esses episódios consolidaram a preocupação com a transmissão ocupacional e reforçaram a urgência de medidas preventivas rigorosas (Sanchez-Rojas et al., 2025).
Para o Brasil, os registros norte-americanos servem como um alerta estratégico. Ainda não há evidências da presença do H5N1 em bovinos nacionais, mas o risco é real — especialmente considerando a rota das aves migratórias que cruzam o território brasileiro e a elevada densidade de rebanhos leiteiros. De acordo com o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA, 2025), já foram identificados casos de influenza aviária em aves silvestres e domésticas no país, reforçando a possibilidade de introdução e disseminação viral. A utilização de leite cru de descarte para alimentação de bezerros, prática comum em diversas propriedades, amplia essa vulnerabilidade, sobretudo porque a maioria das fazendas não dispõe de sistemas de pasteurização.
Figura 1. Rotas de transmissão do H5N1 e inativação do vírus pela pasteurização do leite de descarte
Nesse contexto, a biosseguridade consolida-se como a principal linha de defesa contra a introdução e a disseminação do vírus. É fundamental adotar medidas de controle que reduzam o contato entre bovinos e aves, intensificar o monitoramento clínico dos rebanhos, implementar barreiras de higiene para colaboradores e garantir o tratamento adequado do leite de descarte.
A pasteurização já se mostrou eficaz na inativação do H5N1, tanto pelo método lento (63 °C por 30 minutos) quanto pelo rápido (72 °C por 15 segundos). No entanto, sua adoção ainda é restrita a uma minoria de propriedades rurais, o que evidencia a necessidade de soluções alternativas, acessíveis e seguras (Crossley et al., 2025).
Diante dessa limitação, pesquisadores têm buscado métodos práticos e de baixo custo que possam ser aplicados à realidade dos sistemas produtivos (Crossley et al., 2025). Entre as estratégias avaliadas, a acidificação do leite cru com ácido cítrico, até atingir pH entre 4,1 e 4,2, tem se mostrado especialmente promissora. Ensaios laboratoriais comprovaram que esse procedimento é capaz de inativar completamente o vírus H5N1 em leite integral proveniente de vacas infectadas, sem comprometer o valor nutricional nem a palatabilidade para os bezerros. Além do efeito direto sobre o vírus, observou-se também redução na incidência de diarreia em animais jovens; tem-se oferecido um benefício duplo para o manejo. Outro achado relevante foi o maior efeito virucida em amostras com alto teor de gordura, possivelmente em razão da ação sinérgica de lipídios com propriedades antimicrobianas (Crossley et al., 2025).
Os experimentos indicaram que a eficácia da acidificação depende diretamente do pH e do tempo de exposição. Quando o leite foi ajustado para pH 4,1–4,2 e mantido nessa condição por pelo menos seis horas, não houve detecção de vírus viável. Em contrapartida, outro método testado, baseado na ativação do sistema lactoperoxidase, não apresentou efeito significativo contra o H5N1, reforçando que a acidificação é, até o momento, a estratégia mais eficaz para a inativação viral em condições laboratoriais.
Na prática, esse protocolo deve ser entendido como uma ferramenta complementar de biosseguridade no manejo do leite de descarte, e não como substituto da pasteurização quando o produto se destina à alimentação de bezerros ou ao consumo humano. Para aplicação em campo, recomenda-se seguir etapas simples: armazenar o leite de descarte em recipientes limpos e exclusivos; monitorar o pH com fitas indicadoras ou medidores digitais; adicionar ácido cítrico gradualmente até alcançar o pH desejado; manter o leite acidificado nesse intervalo por no mínimo seis horas; e, por fim, destinar o produto conforme orientação do médico-veterinário responsável.
Essa prática apresenta vantagens significativas: é acessível, de baixo custo e viável para pequenas e médias propriedades; aumenta a segurança sanitária, reduzindo o risco de disseminação do H5N1 e a exposição da equipe de manejo; e oferece uma alternativa eficaz para o tratamento do leite não comercializável, complementando a pasteurização nas fazendas que já possuem o equipamento. Contudo, por se tratar de um procedimento testado em ambiente laboratorial, é essencial que sua adoção seja acompanhada por profissionais capacitados, garantindo a segurança e a adequação às condições de cada sistema de produção.
A emergência do H5N1 em bovinos leiteiros nos Estados Unidos e os casos subsequentes em humanos demonstram que a influenza aviária deixou de ser uma preocupação exclusiva da avicultura. O vírus agora representa um desafio transversal para a saúde animal, a saúde pública e a cadeia do leite. O Brasil deve se antecipar reforçando a biosseguridade nas propriedades, monitorando possíveis rotas de introdução e garantindo o tratamento adequado do leite de descarte. A pasteurização continua sendo a medida mais segura, mas a acidificação surge como alternativa prática e eficiente, especialmente para fazendas que não dispõem de estrutura tecnológica.
Investir em prevenção é investir na proteção do rebanho, dos trabalhadores e de toda a cadeia produtiva.
Fonte: MilkPoint







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